Sobre bailarinas, ingleses e historiadores

13.3.17

Texto de *Fernando Horta

Em função da História, as escolhas que parecem pequenas, revelam enormes contextos e, às vezes, espúrios interesses.

Já tive uma namorada bailarina. Namoramos no início dos nossos 20, e ela já tinha 15 anos dedicados ao ballet. Desde o ato de caminhar, secar-se ao tomar banho ou postar copos sobre a mesa, todos os seus movimentos eram de uma candura e controle impressionantes. A posição dos dedos, o peso do corpo sobre os pés, a forma de postar o tronco, tudo tinha graça e leveza. Quando caminhava, não se ouvia, por exemplo, o barulho dos passos ou do corpo.


Cabe a você decidir se enche os copos, se caminha com leveza ou se janta com juízes
crédito imagem: Reprodução Facebook

Existem outros saberes que quando adquiridos se tornam parte integral do indivíduo. Conheci, certa vez, um professor cujos pais eram ingleses. Ele nascera no Brasil, mas a educação dos "lordes" lhe acompanhava até na hora de comer "xis". Comia com garfo e faca e muito guardanapo, que eram usados de forma quase imperceptível. Uma coisa que me impressionava era que todas as vezes que estávamos comendo algo, meu copo nunca ficava vazio. A educação dele fazia com que sempre antes de se servir (fosse água, vinho ou qualquer outra coisa) ele completasse primeiro os copos de quem lhe acompanhava o momento. Era tão parte dele a educação que não lhe parecia pedantismo ou ofensa a quem quer que fosse.

A História é um desses saberes. Uma vez que você obtém, seu olhar sobre as coisas insufla-se de temporalidade e contexto. Desde um mendigo a lhe abordar na rua, até um jantar na casa de juízes, tudo passa a ter outras cores, outros cheiros. Você passa a reconhecer intencionalidades, tanto as abertas como as veladas. Os silêncios e os "não ditos" passam a ser tão eloquentes quanto as letras garrafais. As derivações contextuais se diferenciam das consequências inadvertidas como água e óleo. A História, quando adquirida para além de uma recoleção erudita de datas, números ou citações, passa a compor uma moldura sobre a qual o mundo se desvela.

Tal como o ballet, a História te permite um movimento natural, quase imperceptível pelo mundo dos interesses ou a percepção da falta de leveza do interesse dos mundos. Tal como a educação inglesa, a História te permite ver objetivamente os que estão com seus copos vazios.

É claro que de posse de todo este saber, cabe a você decidir se enche os copos, se caminha com leveza ou se janta com juízes.

Mas aqui a História, de novo, te permite compreender o que acontece quando não se tem um comportamento retilíneo. Permite que você saiba o que acontecerá quando uns têm seus copos sempre cheios e outros sempre vazios. A História te permite entender o que acontecerá se você usar um guardanapo, de forma quase imperceptível, a limpar uns ou pisar de forma bruta e constante sobre outros. 

No fim, de posse deste saber, é você que escolhe com quem janta e para quem enche os copos. Mas, em função da História, estas escolhas que parecem pequenas, revelam enormes contextos e, às vezes, espúrios interesses.

(*) Fernando Horta é professor, historiador e doutorando da UnB (Universidade de Brasília).

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